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A OBRA DE DOSTOIEVSKI por Emanuel Vladimir Castro


Foi na Rússia do século XIX que o romance moderno teve um de seus inícios, com a obra de Fiódor Dostoievski.

Foi Nelson Rodrigues quem disse: “em cada partida de futebol, se pode ver uma tragédia Shakespeariana, ou um verdadeiro romance de Dostoievski". Essa frase serve para descrever duas tendências que são recorrentes na leitura de Dostoievski. A primeira é a vinculação com Shakespeare, muito comum desde o século XIX. Entre os que fizeram essa comparação, está ninguém menos que o Doutor Sigmund Freud, que escreveu, inclusive, um ensaio sobre Dostoievski, chamado Dostoievski e o Parricídio. E isto por si só, já dá a dimensão de Dostoievski. A segunda ideia, é de que nas obras de Dostoievski se chega no limite da condição humana. É como se algo muito profundo, algo que não se pode desconhecer, e que é talvez, intolerável para nossa consciência, chegasse de fato a uma consistência literária e se tornasse inevitável para todos nós. E é por essa percepção do limite da condição humana, que Dostoievski é visto como um dos autores na origem da modernidade. Desta forma, um romance como Crime e Castigo, pode ser visto como, por excelência, o primeiro romance moderno.

Nas palavras de Dostoievski: “Tudo está nas mãos do homem e, se ele deixar escorrer por entre os dedos, será por covardia. Do que as pessoas mais têm medo? O que elas mais temem é dar um novo passo ou enunciar uma palavra nova.”

Essas são as palavras de Raskolnikov, um jovem que está pensando em cometer um crime. Essa citação está no começo de Crime e Castigo, considerado o maior entre todos os romances policiais. E também o primeiro grande romance moderno. Com seu radicalismo, sua profundidade, sua incerteza, uma incerteza inexaurível. Seu clima é de introspecção, o herói se pergunta: “e daí se estou sozinho, e daí se não há Deus, e daí se não ligo para as regras sociais, e daí se não me comporto de acordo com a moral da sociedade e de Deus?" Estes questionamentos fazem de Raskolnikov nosso antepassado espiritual.

É em São Petersburgo onde a ação se desenrola. Em 1866, quando o livro foi escrito, São Petersburgo era a capital imperial da Rússia com todas as características de uma metrópole moderna.

Dostoievski nos mostra suas vísceras, os cortiços, os marginais e miseráveis, os emocionalmente desamparados, os humilhados e ofendidos, vítimas do início da devastação da sociedade humana.



“Meu jovem, sabe o que significa não ter para onde ir?... Foi a tristeza que eu suguei do fundo dessa garrafa. As tristezas e as lágrimas que eu encontrei e bebi.” (Crime e Castigo)


Este é o limite do desespero estremo, o conforto nos vícios da carne.

Aqueles que dizem que não gostam de Dostoievski, declaram que todos os seus personagens são loucos. Kafka contra argumentaria dizendo: “não... eles são apenas incidentalmente loucos.” Essa é uma maneira muito rica de apresentar a humanidade. Porque todos nós somos loucos de vez em quando. E Dostoievski era fascinado pela loucura da psicologia normal. Sabemos que é normal nos pegarmos dizendo: “meu Deus, que idiota eu sou! - me ferrei! ou entendi!”


Para Dostoievski, a prisão foi a grande experiência de amadurecimento de sua vida, que ele relembra no livro Recordações da Casa dos Mortos.

“No criminoso, a prisão desenvolve só o ódio, uma ânsia pelos prazeres proibidos e uma terrível irresponsabilidade, corrupção e perversidade, maledicência, tráfego de escândalos. Isso não tinha fim, era um inferno, o abismo mais profundo e a escuridão lá fora”

O mundo da prisão de Dostoievski, o mundo da casa dos mortos, se abre e se transforma no mundo de Crime e Castigo e de todos os seus grandes romances. É um mundo de gritos, desespero, gritos de raiva, que se ouvem na noite. Um mundo de vai e vem, de portas batendo, corredores com correntes de ar, sussurros e brigas através de paredes finas. E nos interiores, ressentimento, sempre miseráveis e minúsculos, como no quarto de Raskolnikov. Papel de parede amarelado, e o desejo por um lar. Mas não tem lar, não existe lar em Dostoievski. As camas não são para o sono profundo em Dostoievski, são para cair delas, para provocar pesadelo, para ficar doente nelas, para remoer pensamentos, com mal humor ou agitação.

“..., mas por que um homem inteligente como o senhor fica deitado como um saco de carvão? Por que não faz nada nunca? Mas estou fazendo alguma coisa... Estou pensando...” (Crime e Castigo)

“Eu garanto, pensar demais é uma doença... Por que digo isso? A gente sempre se exibe com doenças. Eu, especialmente. E lhe digo que toda atividade intelectual é uma doença.”

(Memórias do Subsolo)


Pensar, um outro personagem. Dostoievski criou o homem do subterrâneo. É uma figura contemporânea, tanto quanto o CORONA VIRUS. Imaginemos pensamentos perversos e rancorosos. Ele se apresenta para nós como um rancoroso, invejoso, que não para de falar. Pensem na ideia de futilidade, na ideia de não ter fim, de um balbucio sem sequência. Um pesadelo eterno e sem sentido, num presente que é apenas exibicionismo. Ele é um expositor indecente da consciência. Ele está no pensamento.

Dostoievski nos mostra que não é preciso ir para a prisão para viver confinado na solidão. Raskolnikov e o Homem do subterrâneo, são a nossa representação, são seres atormentados pelo tédio e pela inercia autodestrutiva. Porque são membros de uma sociedade que não dá oportunidades aos seus anseios, sua energia, seus talentos. A Rússia era autoritária, patriarcal, controlada por uma burocracia que esmagava a individualidade. Para o homem ambicioso e educado, não havia literalmente nada a fazer. Mas a maior lição que Dostoievski aprendeu na prisão da Sibéria, é que quando os homens se sentem impotentes e sem saída, fazem qualquer coisa para impor sua individualidade. E como isso se aplica a Raskolnikov? E a nós mesmos? Como Raskolnikov e nós poderemos nos impor? Nos definir? Talvez só por um ato de autoimposição, de estrema agressividade.

É sempre em torno do crime que gira a ação, em todos os grandes romances de Dostoievski. Para Raskolnikov é uma espécie de teste, uma experiência decisiva para si próprio, afim de provar a sua própria natureza. O golpe daquele machado, irá libertá-lo de todas as questões que o atormentam? Contradições, incertezas, que ameaçam enterrá-lo? Ou irá tirar dele, irremediavelmente, qualquer possibilidade de libertação?

Crime e Castigo é a mais poderosa, a mais poética, narrativa da própria alienação através do mal desde Macbeth (escrita entre 1603 e 1607). Macbeth achava que ouvia uma voz, ouvindo uma voz que gritava, não dormia mais. Macbeth tinha assassinado o sono, o sono da inocência. Raskolnikov deve ter murmurado para si muitas vezes: "dormir nunca mais." Ele perdeu a paz de espirito. E o resto do livro é a história da luta para recuperar esta paz, que Dostoievski descreve como reunir-se a família humana, sair desta terrível armadilha do si próprio, deste pesadelo de alienação e solidão.

As cenas com o Juiz da Instrução, são as mais interessantes de todo o livro. E enquanto Raskolnikov está cercando o interrogador, também cerca a si próprio; se abatendo, tentando dar sentido ao que ele fez. Aqui não estamos procurando um culpado. Estamos procurando um motivo. E, tentando dar sentido ao seu ato Raskolnikov, tenta todo tipo de explicações. Dostoievski estava ansioso em suas próprias palavras para explicar o crime de uma maneira ou de outra. Mas seu gênio não permitia. “Eu queria ser Napoleão”. Este era o favorito de Dostoievski, entre várias tentativas, suas várias versões para explicar o motivo pelo qual tinha feito o que fez. O poder faz pressão sobre o homem verdadeiramente extraordinário, que ousa abaixar-se e apanha-lo. Este é Raskolnikov, em sua faceta mais diabólica, que com certeza antecipa Nietzsche (filósofo, filólogo, crítico cultural, poeta e compositor alemão do século XIX 1844-1900), e até o fascismo do século XX.

Em suas notas, Dostoievski considera inúmeras vezes a ideia do suicídio. Mas não faz isso. Sem ter para onde ir, procura Sonia, a prostituta. E a pergunta:

- Rezas muito para Deus, Sonia?

- O que seria de mim sem Deus?

- E o que Deus fez por você?

- Ele faz tudo.

Raskolnikov pede que leia para ele sobre a ressurreição de Lázaro;

“Sou a ressurreição e a vida. E aquele que viver e acreditar em mim poderá estar morto e ainda viverá. E aquele que viver e acreditar em mim, nunca morrerá”.

Então Raskolnikov confessa para Sonia o seu crime, o assassinato. E lhe pergunta o que fazer. E Sonia responde:

“... Vá agora mesmo até a rua, abaixe-se, beije a terra que você manchou e diga para todos em voz alta, “Sou um assassino”. Então Deus lhe dará vida outra vez... Aceite o sofrimento e seja redimido por ele”.


O único livro que Dostoievski podia ter na prisão era uma velha bíblia como a de Sonia. E o único sinal de humildade que ele notou nos presidiários estava na prática do cristianismo ortodoxo, ainda vivo entre eles. Isto o impressionou muito, e em Crime e Castigo, começou uma longa luta com sigo mesmo a respeito da existência de Deus.

Quando Dostoievski morreu em 1881, deixou para nós O Idiota, O possuído, Os Irmãos Karamazov, bem como Crime e Castigo e muitos outros. Ele também se engajou numa batalha corrente contra o espirito complacente burguês da Europa e todas as ideias ocidentais inspiradas em uma ordem social capitalista e socialista. Contra isso ele promoveu a ideia mística russa de fraternidade e união, baseada nas virtudes sublimes do cristianismo de amor e auto sacrifício.

Aceitar o sofrimento, diz Sonia para Raskolnikov. Aceitar o sofrimento e ser redimido por ele. Estamos abordando aqui algo crucial na ficção de Dostoievski, o poder de redenção do sofrimento. E aqueles que não gostam de Dostoievski costumam dizer: “o que há de tão bom no sofrimento? Sofrer avilta, sofrer destrói." E é certo, basta eles apontarem uma das grandes obras de Dostoievski para dizer isto. Que, do começo ao fim, não aguentam mais tanto sofrimento. Ora, Dostoievski achava que sofrimento e amor são inseparáveis. Em nossa solidariedade humana, sofremos, porque somos todos culpados em relação ao outro. Estamos, todo o tempo, infligindo sofrimento, mágoa, ao outro. E nossa unidade no amor é o lado oposto de nossa culpa no sofrimento. Sonia acreditava nisso, ela lera o novo testamento para Raskolnikov. Sonia o faz confessar, beijar a terra imunda e aceitar o sofrimento.

Sonia e o amor o dobraram, escreveu Dostoievski em seu caderno de notas. Raskolnikov mostrou-se fraco em sua tentativa de ficar sozinho; ele exilou-se de sua própria humanidade. Só através da confissão e aceitando as consequências desta confissão, ele pode achar o caminho de volta para si mesmo e reencontrar a família humana.

Raskolnikov levou centenas de páginas para achar essas simples palavras de confissão; páginas escritas, é bom lembrar, em 1866, em meio a era vitoriana. E ainda assim, as páginas do livro desafiam as ideias vitorianas até o âmago. Elas anteciparam a condição que nos encontramos hoje. No purista Dostoievski, o paradoxo de que a regeneração do criminoso começa com o castigo público. Numa palavra, a casa dos mortos é o lugar do nascimento.

Nas palavras de Dostoievski: “Estamos tão desacostumados a viver que às vezes nos sentimos meio relutantes com a vida real... Então, o que estamos procurando em volta? Por que choramos? O que pedimos? Não nos conhecemos, e seria pior para nós se nossos caprichos idiotas fossem satisfeitos, se perdêssemos nossos grilhões. Eu garanto que imediatamente iríamos suplicar para voltar à disciplina.... Desculpem-me, senhores. Só cheguei a uma conclusão lógica em minha vida, que vocês não ousariam ultrapassar os limites. E o que vocês chamam bom senso é na verdade covardia. Vocês se consolam com a própria decepção. Então, talvez eu consiga ser mais vivo que vocês. Olhem melhor, depois de tudo, nem mesmo sabemos onde a vida é vivida, ou o que ela é. Não sabemos de que lado estar, a quem prestar lealdade, o que amar, o que detestar, o que respeitar, o que desprezar. Achamos difícil até mesmo sermos seres humanos de carne e osso, à nossa maneira. Temos vergonha disso. Vivemos nos esforçando para ser uma espécie sem precedente de seres humanos generalizados. Nascemos mortos. Há muito deixamos de ser filhos de pais vivos. E ficamos cada vez mais contentes com nossa condição. Tomamos gosto por ela. Em breve inventaremos um método para nascer de uma Idea”. (Memórias do Subsolo)

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